domingo, 19 de outubro de 2008

Aos que querem uma segunda-feira de otimismo e boas maneiras, favor pular esta postagem.

"A perplexidade de pertencer à raça humana. O que quer dizer ser humano? Os canalhas são humanos? Os assassinos são humanos? A cada ano novo, nas retrospectivas, o que se vê é tão sórdido, tão absurdo, ou tão terrificante, que você se pergunta com renovada intensidade: o que é ser humano? Quem era mesmo a santa que lavava os pés dos leprosos e depois bebia a água das bacias? Criança, no colégio interno eu tinha convulsivos ataques de náusea quando a freira me lia a tal história. Era sempre um sair correndo com o lenço na boca e vomitar lá fora. Aquela santa era humana? Uma noiva de Deus, me diziam. Eu, no meu mais lá no fundo, meditava: que Ele nunca me perceba, que aos olhos dele eu seja apenas sombra. Deu certo. E até hoje nunca vou entender por que Deus ficava noivo de alguém que bebia aquela água nojenta. Com o mesmo horror e perplexidade, hoje me pergunto: por que alguém mata alguém com doze punhaladas? Daniela Perez, doze punhaladas. Margot Proença, minha amiga de infância, doze facadas. Aparício Basílio, meu amigo de mocidade, oitenta ou noventa tesouradas. E centenas, milhares de anônimos assassinados, torturados, linchados.

O que é ser humano? Entre a verdade e os infernos, seriam dez passos de claridade, dez passos de escuridão?"

(segunda, 11 de janeiro de 1993)

HILST, Hilda. Senhor de Porcos e de Homens, in Cascos & Carícias & Outras Crônicas. São Paulo: Globo, 2007.